A Constitucionalidade do Modelo de Responsabilização de Intermediários do Marco Civil da Internet

A Constitucionalidade do Modelo de Responsabilização de Intermediários do Marco Civil da Internet

Contornos de uma Audiência Pública do Supremo Tribunal Federal do Brasil

*Por Sérgio Garcia Alves, Gerente de Políticas Públicas da ALAI para o Brasil.

Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal do Brasil promove momento de abertura de seus processos e ritos de formação de opinião de julgadores, ao realizar uma audiência pública sobre a constitucionalidade do regime de responsabilização civil do art. 19 do Marco Civil da Internet, Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014.

É importante pontuar exatamente a que serve e a que não se destina essa audiência pública convocada no âmbito de processos judiciais constitucionais, de modo a não confundir as trilhas em curso no Executivo, no Legislativo, no Judiciário, na gestão privada de plataformas, no mercado concorrencial, nos ambientes acadêmicos, nos espaços de ativismo social, nos planos nacional e internacional.

Especificamente, o art. 19 do Marco Civil de Internet (i) estabelece a responsabilização civil de provedores de aplicação de Internet que deixam de agir, após ordem judicial de retirada de conteúdo que o Judiciário brasileiro reconheça ser ilegal, e (ii) não impede que provedores adotem mecanismos internos de retirada de conteúdo que violem seus termos de usos e regras de comunidade.

Ele também define que a instância específica para decidir sobre eventual ilegalidade de conteúdos online de terceiros que venha a responsabilizar os provedores de aplicação de Internet é exclusivamente o Poder Judiciário. Por conseguinte, os provedores não têm a obrigação de monitorar ou filtrar o conteúdo de seus usuários, tampouco devem exercem controle prévio ou após simples notificação extrajudicial sobre conteúdo disponibilizado online.

Em resumo, esse desenho jurídico (i) impulsiona a disponibilização de espaço para a disseminação de ideias em ambiente digital, (ii) promove a liberdade de expressão na Internet, (iii) desincentiva os provedores de aplicações de Internet a exercerem função censora e (iv) assegura que indivíduos produtores de conteúdo ilícito e causador de
dano a outrem serão devidamente responsabilizados.

Não está em disputa a análise dos fatos específicos que deram origem à provocação de instâncias originárias no Judiciário, e a Corte Constitucional também não disporá sobre a criação de novas regras para o ambiente online. Esses recortes podem ser evidentes à comunidade jurídica nacional, mas eventualmente escapam ao indivíduo não
especializado no processo constitucional brasileiro.

Ao longo de quase dez anos, o Marco Civil da Internet faz prevalecer no Brasil a promoção do direito à liberdade de expressão e à manifestação do pensamento, o combate à censura na Internet e a responsabilização de quem causa dano a terceiro, em linha com a Constituição Federal e outras leis brasileiras, como o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, por exemplo.

Pontualmente, os relatores dos Recursos Extraordinários (REs) 1037396 e 1057258 (Temas 533 e 987 da repercussão geral) decidiram convocar audiência pública “sobre (i) o regime de responsabilidade de provedores de aplicativos ou de ferramentas de Internet por conteúdo gerado pelos usuários, e (ii) a possibilidade de remoção de conteúdos que possam ofender direitos de personalidade, incitar o ódio ou difundir notícias fraudulentas a partir de notificação extrajudicial.”

Para fins processuais e em respeito à separação dos poderes, a audiência pública deve se ater à matéria constitucional relacionada à sistemática do art. 19 do Marco Civil e dos contornos do regime de responsabilidade civil vigentes.

Tudo aquilo que é estranho ao núcleo de julgamento dos Temas que deram causa à convocatória, pode ter valor técnico, intelectual, acadêmico, político ou ativista, mas deverá ser apartado pelos Relatores, quando do futuro julgamento dos respectivos Recursos Extraordinários.

É o que se extrai da redação dos artigos 21, XVII, e 154, parágrafo único, IV e VI, do Regimento Interno do STF, que afirma que as audiência públicas servem “para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em determinada matéria”, que “o depoente deverá limitar-se ao tema ou questão em debate” e que “os trabalhos da audiência pública serão registrados e juntados ao processo, quando for o caso”.

Nessa leitura, a Decisão convocatória aparenta inovar em relação aos Temas 533 e 987 da repercussão geral, ao especificar questões relacionadas à “remoção de conteúdos que possam (…) incitar o ódio ou difundir notícias fraudulentas”, que não integram o núcleo dos Temas enunciados. A indústria de Internet e a sociedade brasileira estão
comprometidas a perseguir esses objetivos em trilhas do processo legiferante e da formulação de políticas públicas em trâmite nos Poderes Legislativo e Executivo federais, mantendo diálogo permanente com o Judiciário.

Não obstante, a Decisão que tornou pública a relação de depoentes e metodologia dos trabalhos afirmou que a audiência pública servirá tanto para subsidiar os Ministros da Corte com informações técnico-científicas sobre as questões em análise, como para divulgação das discussões à sociedade.

Ou seja, essa audiência pública é, a um só tempo, (i) um espaço constitucional qualificado em que as pessoas depõem sobre um tema delimitado no processo para informar a futura tomada de decisão da Corte e também (ii) um evento que dialoga com o público sobre assuntos que não se relacionam ao cerne da matéria constitucional em apreço, e que podem ser de interesse geral do País.

Oportunamente, ainda que o Supremo objetive promover espaço em que “a diversidade de perspectivas e visões institucionais favorece [a] dialética e enriquece a discussão por meio da interlocução respeitosa entre os seus participantes”, deverá também exercer sua função judiciária e distinguir o que são assuntos exógenos aos fins da audiência pública, para que não haja margem a desentendimentos sobre seus significados.

Porque o Regimento Interno do STF determina que “o depoente deverá limitar-se ao tema ou questão em debate”, caberá ao Supremo balizar o conteúdo da audiência pública, podendo inclusive indeferir exposições sobre temas manifestamente alheios à convocatória e aos processos relatados, antes e durante a audiência pública.

O STF informou que inicialmente deferiu 45 dos 91 pedidos de inscrição para participação na audiência pública, utilizando-se de critérios de equilíbrio quantitativo entre os diferentes pontos de vista. Posteriormente admitiu outras entidades que apresentaram pedido de reconsideração. Supõe-se que incidentalmente alguns dos 46 pedidos indeferidos abordassem assuntos não relacionados à audiência pública e que os expositores habilitados estarão todos adstritos aos termos da convocatória.

Por exemplo, em outras searas, grupos interessados estão se utilizando de espaços impróprios para reivindicar estímulos regulatórios assimétricos que viabilizem a transferência de recursos de publicidade online e disseminação de conteúdo relevante do ecossistema digital global para a tradicional indústria de comunicação social brasileira. Certamente, são temas que podem ser discutidos em ambiente legislativo e multistakeholder adequados, e em que nada se relacionam ao esforço de controle de constitucionalidade do regime de responsabilização civil de intermediários em curso.

Reconhece-se que a abertura da Suprema Corte aos interessados na matéria é oportunidade valiosa; os Ministros que presidirão a audiência pública saberão exercer esse controle para maximizar os efeitos constitucionais esperados e distinguirem-na de eventos ordinários promovidos rotineiramente pela sociedade fora dos autos.

Por fim, espera-se que a audiência pública proporcione ao STF e à sociedade brasileira oportunidade para receberem mais informações sobre como o regime vigente de responsabilidade civil tem sido capaz de promover a liberdade de expressão, reduzir os incentivos à censura, respeitar as normas de direito do consumidor, delimitar a individualização da pena, privilegiar a pacificação de conflitos por meio do Judiciário e incentivar a adoção de mecanismos privados de retirada de conteúdo que viole os termos de uso de provedores de aplicação de Internet.

No Brasil, A ALAI expressa sua vocação para a cooperação contínua com os Três Poderes da República e com as organizações da sociedade brasileira, a fim de trabalhar juntos em prol de uma Internet que seja uma ferramenta de desenvolvimento social, de construção da cidadania, de promoção dos direitos direitos humanos e do fortalecimento da democracia no País e em toda a América Latina.

Pela natureza de atuação da ALAI, este texto se dirige à sociedade brasileira e à comunidade de países da América Latina interessada nos debates sobre aprimoramentos dos regimes de liberdade de expressão, combate à censura e promoção de direitos humanos por meio da Internet.

Porque os sistemas normativos e processos de formulação de políticas públicas na região se comunicam, é fundamental dar destaque a iniciativas que promovam a liberdade de expressão no ambiente digital e favoreçam o debate de ideias em ambiente multistakeholder.

A ALAI e o autor celebram a realização da audiência pública pelo Supremo Tribunal Federal como instrumento promotor de transparência, ao demonstrar a sensibilidade da Corte Constitucional às questões mais relevantes do ambiente digital e estimular o refinamento de ideias sobre políticas públicas de Internet no Brasil.

Leia e baixe o comunicado completo aqui.

Notas relacionadas

ALAI expressa sua preocupação com proposta de Decreto que implicaria mundanças ao Marco Civil da Internet

Los caminos inciertos de la regulación de plataformas en Brasil

Pela Democracia Brasileira

Fechar Menu
Translate »